quarta-feira, 21 de julho de 2010

Bruxa Robert@

Acordou confusa depois de sonhar com um tempo em que não fariam mais falta nem sentido. O Anjo Descabelado alisava as asas e cantava um samba choroso empoleirado no encosto da poltrona na frente da janela, de costas para a Bruxa Roberta, numa imagem tão celestial que parecia ser ele quem iluminava a manhã, e não o inverso.

A Bruxa ficou prontamente irritada e quis começar uma briga. Mas, como brigar com uma criatura com asas?

Eis um romance conflituoso... Começaram bem – sem expectativas, depois deram um fim aos pudores e acabaram matando a poesia. Nada mal para um Anjo e uma Bruxa.

Ele, portador daquela paz de espírito sobre-humana – nunca raivoso – no máximo triste e melancólico com seus sambas de lamento, alisando as penas grandes das pontas das asas para toda a eternidade de anjo que é todo bondade.

Ela, briguenta, mal humorada, xiita incorrigível e sempre a flor da pele. Passional. Uma verdadeira Bruxa com seus feitiços tresloucados e a militância pra tudo que é causa sindicalista que confira alguma dignidade ao universo obscuro de sua espécie. Mais obscuro é o futuro do casal nesta história mal contada com pretensões de conto de fadas (des)encantadas.

“Mais um desses feitiços e eu desisto”, pensou o Anjo enquanto acendia um cigarro e fingia não saber que ela já estava acordada e pronta pra brigar.

“Ou ele reage ou eu o mando à merda”, prometeu em pensamento a Bruxa ainda meio sonolenta e pessimista.

Mas, nesta manhã iluminada e idílica, o Anjo deixou de lado sua natureza divina e voltou o rosto crispado para a Bruxa, que sentou entre os lençóis e correspondeu à altura.

Brigaram até a exaustão. Os vizinhos ouviram e nunca mais voltaram a acreditar que aquele ser que gritava, esbravejava e esmurrava a porta poderia ser mesmo uma criatura celestial, dotada de inocência e virtude. A Bruxa Roberta quebrou o relógio, o cinzeiro, as taças e a garrafa de vinho que ainda guardava um pouco da bebida e formou uma bonita mancha rubra na parede lateral do quarto. As penas do Anjo se eriçaram como de um animal ameaçado e a marca vermelha que a Bruxa carrega desde seu nascimento entre as sobrancelhas ficou ressaltada em sua pele pálida de Bruxa histérica.

Foi um pandemônio. A explosão de todos os sentimentos humanos em dois seres apartados por aquilo que são. As fadinhas sem graça se reuniram boquiabertas na calçada e tentaram intervir. Uma delas foi arremessada pra fora por um olhar da Bruxa Roberta que poderia derrubar um Gigante. Aliás, este também tentou, mas foi expulso pelo Anjo Descabelado que batia as asas e xingava ao seu redor até quase sufoca-lo.

Toda a cidade aguardava apreensiva pelo fim daquela balbúrdia. Previam a morte do Anjo – ou da Bruxa Roberta (menos provável considerando a maldade que lhe é inerente). O certo, para todos, era a morte do amor. O fim do romance que a cidade nunca engoliu e as bocas medíocres já alardeavam com singular afetação: “Só podia dar nisso”.

O que ninguém sabia era que aquela briga estrondosa resultaria numa fundamental reconciliação daqueles seres inconciliáveis por natureza. E a mancha de vinho na parede lateral do quarto marcaria para sempre a manhã idílica em que a Bruxa Roberta e o Anjo Descabelado se encontraram no meio do caminho daquilo que são.

Nenhum comentário:

Postar um comentário